domingo, 31 de maio de 2009

Dois abraços

A casa é delapidada, mas as pessoas que a habitam são de uma riqueza surpreendente. A sensação de conforto que sinto quando entro pela porta de madeira, mal segura por duas dobradiças enferrujadas, é partilhada pelos outros visitantes que tenho levado àquela casa. Eu gosto de pensar que aquela é uma família feliz e que o seu bem-estar se materializa em algo que envolve todos os que transpõem a soleira da porta.

aqui falei da casa da minha amiga Vandana e da família fantástica que ela tem. Ontem ao final da tarde, depois do trabalho, fomos novamente visita-los. À mãe chamo-lhe Indian Mummy e ela sorri e as palavras que esforça em inglês saem cantadas. Já temos à vontade suficiente para ficarmos as duas sozinhas na sala, enquanto o resto da família vai ao casamento dos vizinhos. É um feito porque o meu gujarati é tão reduzido quanto o inglês dela. Umas horas antes, ainda com os vizinhos curiosos lá em casa, tive direito a umas dicas de ioga. O pai, um senhor de cinquenta e poucos anos, de cabelos completamente brancos, olhar vivo e sorriso de puto, é "meio médico" como diz a mãe e tem sempre conselhos úteis. Já tenho uma sequência de asanas para acordar todas as articulações do corpo de manhã.

Quando ficamos sozinhos, eu, a Vandana, a mãe e o pai, sentados de pernas cruzadas no chão, tivemos das conversas mais interessantes dos meus meses nesta terra. Não sei que educação formal eles têm, mas não será muito avançada, o que é um factor completamente irrelevante, quando se é senhor (e senhora) de um espírito tão curioso e com vontade de partilhar como o deste casal. A conversa começou com uma simples pergunta por parte do pai: qual é a vantagem de não estar casada? Feita sem qualquer ironia na voz, como seria natural esperar de alguém certo do seu modo de viver. No olhar dele consegui ver que era mesmo curiosidade, ele queria sinceramente perceber o meu estilo de vida. Passamos horas sentados no chão, com a Vandana a traduzir. Comparamos culturas: a segurança da família e a falta de certezas quando se lida com pessoas, a solidão, a situação das mulheres, dinheiro e independência. Chegámos a conclusão nenhuma, como normalmente acontece nas melhores conversas. Dissemos algumas verdades, nomeadamente que todas as formas de viver têm aspectos positivos e aspectos negativos (foi o pai que avançou com esta). Senti o olhar triste da Vandana quando falávamos da injustiça que é ser mulher, especialmente na Índia, das dificuldades e falta de propriedade sobre o sentido da própria vida. O pai não queria acreditar quando lhe disse que não havia castas na Europa (Portugal é demasiado pequeno para ser reconhecido por estes lados) e ficou um pouco atrapalhado quando lhe pedi que me explicasse o que era efectivamente uma casta. Há realidades ancestrais que existem para além da nossa vontade e pedir a quem sempre viveu nelas para as analisar, é quase pedir o impossível. "Não temos força (interior) para mudar estes modos de viver. Fazem parte da nossa cultura e não temos força para os mudar", disse o pai com alguma resignação e de olhar fixo nas lajes de diferentes materiais que compõem o puzzle que é o chão da casa mais "rica" da viela.

Quando me vinha embora, entre as despedidas, a mãe estendeu-me a mão para um cumprimento à Ocidental. Foi a primeira vez que o fez e eu interpretei o gesto como um carinho, uma tentativa de experimentar a minha cultura. Disse-lhe: "No meu país, com os amigos fazemos assim" e arrisquei um abraço. Percebi a estranheza do gesto para ela, mas não a senti retirar-se daquele mimo. Retribuiu o abraço. Ao ouvir isto a minha amiga começa a gritar "Agora eu, agora eu". E assim, sem contar, numa noite de sábado, tive dois "xis-corações".

7 comentários:

fernandesmariateresa disse...

Que queridos! Como os conheço imagino a cena e até me vieram as lágrimas aos olhos. Gostava tanto que pudessem cá vir ou de os fazer sentir como gosto deles e tenho até saudades deles, Lembras-te da cena do gelado!São mesmo uma familia BOA.
Bjhos.

Aurora - Ló disse...

AQUI VAI MAIS UM MUITO ESPECIAL QUE EMBORA VIRTUAL É MESMO MUITO MUITO SENTIDO. ADOREI O QUE ESCREVESTE SOBRE ESTA FAMILIA E TB EU TERIA GOSTADO DE ESTAR SENTADA COM VOCES NESSA CONVERSA INTERESSANTE E ENRIQUECEDORA. UM GRANDE BEIJINHO DESTA FAMILIA DE CÁ QUE GOSTA MUITO DE TI.

Teresa disse...

:)

eduardo disse...

Tão longe de nós a India... esse povo que tem coisas fantásticas como tu próprio já descreveste. Mas depois há diferenças culturais que parecem ser impossível de não ser conhecidas neste Mundo Global. O teu blog também serve para isto... uma aprendizagem sempre aqui venho

JOSÉ MODESTO disse...

Obrigado por partilhar connosco.
Belo.

Saudações Marítimas
José Modesto

Otília Gradim disse...

Querida Teresa(inha)

Tens aqui alguns textos extraordinários e este é um deles!
Não vejo a hora de também eu te poder abraçar ;)) a quantidade de coisas que espero saber desta tua experiencia acho que vai render alguns finos no Lua ;)
Definitivamente não rumarei para essas bandas ;) olha eu sentada no chão… havia de ser bonito… nunca mais me levantava ;))

bjinhos e abraços ;)

Queiroz disse...

Que delícia que deve ter sido essa conversa. O teu relato comoveu-me.
Espalhar abraços é mesmo unir o mundo. E como o sabes fazer tão bem!
Hoje não resisto a enviar-te um abraço...

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