As vezes é demais. Demasiada informação para assimilar num contexto demasiado diferente. Na nossa última conversa tinha ficado a promessa de mais confissões. Eu tinha manifestado a minha curiosidade em saber como é o relacionamento dos namorados na Índia. E ela, despojada dos amigos que o namorado não a deixa ter e dona de uma personalidade alegre e comunicativa, tinha manifestado a sua vontade em partilhar tudo comigo. Assim, quando nos encontramos sozinhas num restaurante de beira de estrada no sábado à noite, começamos a conversa. Falou-me do primeiro namorado que teve e de como só trocaram um beijo depois de 1 ou 2 anos de namoro. Do homem que andou atrás dela depois desta primeira experiência e de como ele se afastou quando ela finalmente lhe devolveu alguma atenção. E depois conheceu o actual namorado. Há uns dois anos atrás. O problema das religiões irreconciliáveis foi logo abordado no início, quando ele lhe confessou que gostava dela, mas que nunca se casariam. Depois, com a voz mais baixa e pausando com mais frequência, a D. confessa o que imagino que há muito tempo quereria ter partilhado com alguém: que fizeram sexo. Explicou-me que ela não queria, como tinha recusado e como ele tinha insistido informando que não era nada de especial e que demorava muito pouco tempo. Aqui confesso que o meu queixo quase que bateu na mesa. “Desculpa, não percebi. Se tu não querias, como é que isso aconteceu?” O problema é que imaginamos as violações e os violadores como pessoas facilmente identificáveis, como os maus da fita num filme, em que logo no início a música nos deixa com uma firme suspeita que aquele homem não é boa gente. Nunca pensamos que um rapaz de sorriso gentil, prestável, competente, com quem trabalhamos diáriamente, se possa comportar como o vilão. Mas a vida real ultrapassa a ficção. “Ele forçou-te?”, “Sim, claro”.
Quando há uns anos estava a ler a biografia do Nelson Mandela, houve uma parte que me impressionou bastante. É um episódio em que ele descreve que, já depois de se ter formado em Direito e de ter começado a estagiar, algo aconteceu que o fez aperceber-se de que ele era uma pessoa de tanto valor como qualquer branco. Fiquei sensibilizada porque sempre pensei que os grandes transformadores da história, tinham sempre a noção da injustiça de que eram alvos. Nunca imaginei que a discriminação pudesse estar de tal modo infiltrada nos modos de vida, ao ponto de os fazer crer que eram efectivamente inferiores e que tinham menos valor como pessoa. Esta conversa com a D. faz-me relembrar esse momento. Enquanto lhe explico que o aconteceu tem enquadramento criminal e que a esse comportamento corresponde uma pena de prisão. Até na Índia. Ela parece surpreendida. Explica-me que para ela, em relação ao amor, sempre foi uma questão de, se ele está feliz, eu estou feliz. “E estás mesmo?” A resposta vem na forma de silêncio.
4 comentários:
"(...) e como ele tinha insistido informando que não era nada de especial e que demorava muito pouco tempo. Aqui confesso que o meu queixo quase que bateu na mesa (...)."
E eu a pensar que o teu queixo quase tinha batido na mesa por ele dizer que não era nada de especial e que demorava muito pouco tempo!...
Quack?! Nós vivemos no mesmo milénio!? Só consigo reter a minha vontade de lhe mandar um valente pontapé nos tim-tins porque não o conheço, ele não está à minha frente e porque estou a fingir que deves ter inventado a história.
Goi!!
O tema dá pano para mangas, colarinhos e etc...
Há a questão cultural: qual é a finalidade da mulher na sociedade? existir como ser e satisfazer as suas vontades? ou servir o homem? Há a questão emocional: diz-se que não a quem se gosta? diz-se que não só porque não se quer?
Com tantas micro-perguntas elaboro uma mais completa:
Diz-se que não a uma pessoa de quem gostamos e que gosta de nós, quando se é ensinada a viver para servir o homem? (tenho presente as tuas belíssimas descrições das refeições)
É muito difícil... porque não há uma cultura que apoie esse tipo de posição, porque provavelmente não há exemplos de outras mulheres, porque simplesmente nunca ninguém lhe disse que tem todo o direito de dizer não.
Adorei o pormenor: "demorava muito pouco tempo". Por cá, não era propriamente um bom atributo:)
Se estivesse no teu lugar também me era muito difícil lidar com essa revelação, até porque, pelo que percebi, trabalhas com os dois... Nunca mais o verás da mesma forma, no entanto pensa nisto: também ele vive e foi criado nesse contexto em que a mulher nasce para o servir. E mudar uma cultura demora gerações...
BEIJOS!!
Pois...afinal a cultura, a religião e o estatuto acabam por determinar os papéis, infelizmente.
Adorei a descrição...por muito dura que seja a realidade.
Beijos
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